terça-feira, 30 de dezembro de 2014

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Naked

Mann und Frau (Umarmung), Egon Schiele, 1917
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É absolutamente legítimo, até mesmo necessário que, conscientemente ou não, alicercemos mecanismos de autodefesa. Mas é ainda melhor quando prescindimo-nos parcial ou totalmente deles com a mais absoluta naturalidade. Algo acerca de confiança e, sobretudo, um sentimento pacífico de que suas vulnerabilidades não se voltarão contra você. É uma dádiva.
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sexta-feira, 21 de novembro de 2014

O amor é uma companhia...

Sunflowers (detail), Van Gogh, 1887
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O amor é uma companhia. 
Já não sei andar só pelos caminhos, 
Porque já não posso andar só. 
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa 
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo. 
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo. 
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar. 

Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela. 
Todo eu sou qualquer força que me abandona. 
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa.
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terça-feira, 18 de novembro de 2014

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

"... deve dar-se sem nada de volta, assim como o pensamento é dado na solidão em toda a excelência do seu excesso..."

Café Müller, Tanztheater Wuppertal Pina Bausch, de 1978
cena extraída do filme "Pina", direção de Wim Wenders, 2011
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Eu-te-amo. A figura não se refere à declaração de amor, à confissão, mas ao repetido proferimento do grito de amor.

Eu-te-amo não tem nuanças. Dispensa as explicações, as organizações, os graus, os escrúpulos. De uma certa forma - paradoxo exorbitante da linguagem -, dizer eu-te-amo é fazer como se não existisse nenhum teatro da fala, e é uma palavra sempre verdadeira (não tem outro referente a não ser seu proferimento: é um performativo).

(Embora seja dito milhões de vezes, eu-te-amo não está no dicionário; é uma figura cuja definição não pode exceder o título.)

A palavra (a palavra-frase) só tem sentido no momento em que eu a pronuncio: não há nela outra informação a não ser seu dizer imediato: nenhuma reserva, nenhum depósito do sentido. Tudo está no lançamento: é uma "fórmula", mas essa fórmula não corresponde a nenhum ritual; as situações em que digo eu-te-amo não podem ser classificadas: eu-te-amo é irreprimível e imprevisível.

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Roland Barthes, in: Fragmentos de um Discurso Amoroso.
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quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O caramujo flor...

Manoel Wesceslau Leite de Barros, 19/12/1916 - 13/11/2014
© foto de Marcelo Buainain. s.d.
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Da viagem que direi?
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Tácito ajuste singular,
de que os outorgantes
somos eu e a bruma
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Ajuste segundo o qual
nascer equivale a ser exposto
num comboio
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E não se pode rescindir o ajuste.
Nem querelar da bruma.
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A. M. Pires Cabral.
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Língua de Brincar, direção de Lucia Castello Branco e Gabriel Sanna, 2007
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(a um Pierrô de Picasso)
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Pierrô é desfigura errante,
andarejo de arrebol.
Vivendo do que desiste,
se expressa melhor em inseto.
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Pierrô tem um rosto de água
que se aclara com a máscara.
Sua descor aparece
como um rosto de vidro na água.
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Pierrô tem sua vareja íntima:
é viciado em raiz de parede.
Sua postura tem anos
de amorfo e deserto
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Pierrô tem o seu lado esquerdo
atrelado aos escombros.
E o outro lado aos escombros.
.................
Solidão tem um rosto de antro.
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Manoel de Barros.
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domingo, 2 de novembro de 2014

"Por que chamas, a um ser humano (o meu mais ser humano), um objeto amado?"

Dialog, Rudolf Bonvie, 1973
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"Tudo está ainda mais incerto, mas sinto que agora alcancei um estado de tranquilidade interior: enquanto pudermos controlar nossos números telefônicos e não houver ninguém para atender continuaremos os três a correr para a frente e para trás ao longo destas linhas brancas, sem lugares de partida ou de chegada que façam pairar aglomerados de sensações e significados por sobre a univocidade de nossa corrida, libertos finalmente da espessura estorvadora de nossas pessoas e vozes e estado de espírito, reduzidos a sinais luminosos, único modo de ser apropriado a quem quer se identificar ao que está dizendo sem o zumbido deformante que a nossa presença ou a alheia transmite ao que dizemos.
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Verdade que o preço a ser pago é alto, mas temos que aceitá-lo: não podemos nos distinguir dos muitos sinais que passam por este caminho, cada um com um significado seu que permanece escondido e indecifrável, pois fora daqui não há mais ninguém capaz de nos receber e de nos entender."
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Italo Calvino, in: Os Amores Difíceis.
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domingo, 26 de outubro de 2014

"Venham embora, palavras, para onde o sentido não se engrosse com a substância impaciente da voz..."

Dante in exile, John Elliott, 1904 
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Eu também não gosto dela: há coisas bem mais importantes que
[toda esta frioleira.
Lendo-a, porém, com um profundo desprezo por ela, a gente descobre
nela, de qualquer modo, um lugar para o que é genuíno.
Mãos que podem reter, olhos
que podem se ampliar, cabelos que podem se eriçar
se for preciso, essas coisas são importantes, não porque

uma altissonante interpretação lhes possa ser dada mas porque são
utéis. Quando elas começam a derivar a ponto de se tornarem ininteligíveis,
a mesma acusação pode ser feita a nós outros,
que não admiramos o que
não podemos entender: o morcego
pendente de cabeça para baixo ou à procura de algo para

comer, elefantes se empurrando, um cavalo selvagem rolando, um lobo
[incansável sob
uma árvore, o crítico imóvel com arrepios na pele como um cavalo que
[sente uma pulga, o torcedor de baseball,
o técnico em estatística...
E nem vale o argumento
para discriminar entre "documentos profissionais e

livros escolares";  todos esses fenômenos são importantes. É preciso fazer
[uma distinção, 
porém: quando arrastada à fama por meios-poetas, o resultado
[não é poesia,
a menos que os poetas entre nós possam ser
"interprétes rigorosos da
imaginação" - acima 
de insolência e trivialidades e que possam apresentar

para inspeção, jardins imaginários contendo rãs verdadeiras; então
[nós a teremos
encontrado. Neste ínterim, se você exige para uma mão
o rude material da poesia em 
toda a sua rudeza e 
para o que está na outra mão
legitimidade, então você se interessa por poesia.
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Marianne Moore.
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segunda-feira, 20 de outubro de 2014

"Nutri a esperança de inventar um verbo poético que seria um dia acessível a todos os sentidos..."

Manuscript self portrait of Arthur Rimbaud, Sergio Albiac, s.d.
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"... arthur, arthur, estamos em aden, abissínia. fodendo &
fumando. nos beijamos. mas é mais que isso. blues.
charco azulado. mancha à tona da lagoa. percepções
ampliadas, alma vita. baia cristalina. explosão de bolas
de vidro coloridas. rasgadura de tecidos de tenda árabe.
se abrindo, aberta como uma caverna, aberta ao máximo.
rendição total."
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Patti Smith, trecho do poema "Sonho com Rimbaud".
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quarta-feira, 15 de outubro de 2014

[ Intimidar o poema a ser raiz ]

Sonho Poético, Martha Barros, 2009
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era um poema lateral aos sentidos.
ganhava formato ébrio
ao nem ser escrito.
longe dos pensamentos
imitava uma pedra 
[aí as palavras drummondeavam].
longe das lógicas
– com tendência vagabunda – 
o poema driblava lados avessos 
de noites
e animais
[aqui as sílabas manoelizam, barrentas].
mas uma estrela nunca brilha
tão solitária;
encarece-se também de luuandinar, 
miar à couto, 
esvair-se para guimarães...
era um poema carente de afetar-se
a ramos gracilianos.
assim alcançava
o estatuto
de raiz.
cheirado, emitia brilhos tímidos
– fosse um pirilampo.
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Ondjaki.
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sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Um bom lugar para ler um livro?

 Portrait of the Marquise de Pompadour, François Boucher, 1756
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"Depois dessa crença central que, durante a minha leitura executava incessantes movimentos de dentro para fora, para a descoberta da verdade, vinham as emoções que me eram dadas pela ação em que tomava parte, porque aquelas tardes eram  mais cheias de acontecimentos dramáticos do que muitas vezes uma vida inteira. Eram os acontecimentos que surgiam no livro que estava a ler; é verdade que as personagens por eles afetadas não eram "reais", como dizia Françoise. Mas todos os sentimentos que a alegria ou o infortúnio de uma personagem real nos fazem experimentar só acontecem em nós por intermédio de uma imagem dessa alegria ou desse infortúnio; o engenho do primeiro romancista consistiu em compreender que no aparelho das nossas emoções, como a imagem é o único elemento essencial, a simplificação que consistiria em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por muito profundamente que simpatizemos com ele, é em grande parte apreendido pelos nossos sentidos, o que quer dizer que permanece para nós opaco, que apresenta um peso morto que a nossa sensibilidade não pode levantar. Se é atingido por uma infelicidade, só numa pequena parte da noção total que dele temos é que podemos comover-nos com isso; muito mais ainda, só numa pequena parte da noção total que ele tem de si é que ele mesmo poderá comover-se. O achado do romancista foi ter a idéia de substituir essas partes impenetráveis á alma por uma quantidade igual de partes imateriais, isto é, que a nossa alma pode assimilar a si mesma. Que importa então que as ações, que as emoções desses seres de uma nova espécie, nos surjam como verdadeiras, visto que as tornamos nossas, visto que é em nós que acontecem, que mantém sob o seu domínio, enquanto viramos febrilmente as páginas do livro, a rapidez da nossa respiração e a intensidade do nosso olhar? E uma vez que o romancista nos pôs nesse estado, no qual, como em todos os estados puramente interiores, toda a emoção é decuplicada, estado em que o seu livro nos vai perturbar à maneira de um sonho, mas de um sonho mais claro que os que temos a dormir, e cuja lembrança irá durar mais tempo, então, eis que ele desencadeia em nós durante uma hora todas as felicidades e todas as infelicidades possíveis, algumas das quais levaríamos anos de vida a conhecer, e as mais intensas das quais nunca nos seriam reveladas, porque a lentidão com que se produzem nos retira a percepção delas (assim, na vida, o nosso coração muda, e essa é a pior dor; mas só na leitura, em imaginação, a conhecemos: na realidade ele muda, como certos fenômenos da natureza se produzem, com suficiente lentidão para que, se pudermos detectar sucessivamente cada um dos seus estados diferentes, em contra-partida nos seja poupada a própria sensação de mudança."
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Marcel Proust, in: Em Busca do Tempo Perdido,
 No Caminho de Swann.
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domingo, 21 de setembro de 2014

Música para curar a alma: Maurizio Pollini

Piano Concerto No.5 in E flat major Op.73, "Emperor": II. Adagio un poco mosso, Beethoven
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"Há belezas para as quais não fomos feitos 
e que são demasiado plenas e definitivas
 para as oscilações de nossa alma..." 
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Emil Cioran.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Nulla dies sine linea

Number 14: Gray, Jackson Pollock, 1948
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A memória é uma ilha de edição - um qualquer
passante diz, em um estilo nonchalant,
e imediatamente apaga a tecla e também
o sentido do que queria dizer.
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Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser
levado junto de roldão.
Onde e como armazenar a cor de cada instante?
Que traço reter da translúcida aurora?
Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas?
O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?
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A vida não é uma tela e jamais adquire
o significado estrito
que se deseja imprimir nela.
Tampouco é uma estória em que cada minúcia
encerra uma moral.
Ela é recheada de locais de desova, presuntos,
liquidações, queimas de arquivos,divisões de capturas,
apagamentos de trechos, sumiços de originais,
grupos de extermínios e fotogramas estourados.
Que importa se as cinzas restam frias
ou se ainda ardem quentes
se não é selecionada urna alguma adequada,
seja grega seja bárbara,
para depositá-las?
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Antes que o amanhã desabe aqui,
ainda hoje será esquecido o que traz
a marca d'água d'hoje.
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Hienas aguardam na tocaia da moita enquanto
os cães de fila do tempo fazem um arquipélago
de fiapos do terno da memória.
Ilhotas. Imagens em farrapos dos dias findos.
Numerosas crateras ozonais.
Os laços de família tornados lapsos.
Oco e cárie e cava e prótese,
assim o mundo vai parindo o defunto
de sua sinopse.
Sem nenhuma explosão final.
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Nulla dies sine linea. Nenhum dia sem um traço.
Um, sem nome e com vontade aguada,
ergue este lema como uma barragem
anti-entropia.
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E os dias sucedem-se e é firmada a intenção
de transmudar todo veneno e ferrugem
em pedaço do paraíso. Ou vice-versa.
Ao prazer do bel-prazer,
como quem aperta um botão da mesa
de uma ilha de edição
e um deus irrompe afinal para resgatar o humano fardo.
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Corrigindo:
......................o humano fado.
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Waly Salomão, in: Carta Aberta a John Ashbery
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quarta-feira, 20 de agosto de 2014

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

"Pensamento individido, pensando um todo simples de ver?"

Monk by the Sea, Caspar David Friedrich, c. 1809
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O curso de um dia nunca é constante.
As horas experimentam dor e prazer.
Na hora da cama só conhece vertigem.
Mas quanto dura um dia?
Tanto quanto o amor, dizem uns.
Mas o amor vai embora cedo,
Antes que o amanhã e a morte se manifestem.
E quanto tempo dura o dia-a-dia?
Uns dizem desde sempre,
Mas começando quando?
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No mesmo instante em que pela primeira vez 
Os olhos se arregalaram e não viram tudo — 
Num não tão tarde quando, pela última vez,
O tempo durou não mais que um dia,
Um dia de adivinhar:
Por quanto tempo é permitido
Chamar de tanto o que é tão pouco?
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Laura Riding.
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quarta-feira, 13 de agosto de 2014

"É sempre bom lembrar... que a dor ocupa metade da verdade..."

"Copo Vazio", faixa do álbum "Gil Luminoso", de 2006
 gravada originalmente por Chico Buarque, em 1974, para o álbum "Sinal Fechado, a composição é do próprio Gil
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Ontem assisti "O Homem das Multidões", de Cao Guimarães e Marcelo Gomes. Se é sempre constrangedor observar pessoas levantando e abandonando um filme no meio da projeção, é absolutamente lindo que ao final dela alguns tipos de alma permaneçam com seus olhos marejados e seus silêncios.
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"Aqui tudo grita silenciosamente,
e, tirando o chapéu,
sinto-me encanecer
lentamente.
E eu próprio
sou um maciço grito sem som..."
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Ievgueni Ievtuchenko.

domingo, 20 de julho de 2014

sexta-feira, 18 de julho de 2014

"tudo é muito eterno, só choramos por sermos condizentes..."

"Qualquer Coisa Que Brilhe", Adélia Prado
 programa Roda Viva, março de 2014
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Minha vida ganhou outros contornos quando aprendi a ler. Desde as primeiras palavras por meio das histórias em quadrinhos aos títulos exigidos na escola. Dos clássicos devorados no fim da adolescência aos livros de psicologia e filosofia. Todos, certamente, me disseram algo, contribuíram para um aprimoramento e enriquecimento não só cultural, mas sobretudo humano. No entanto, nenhum deles me ofereceu o entendimento, a beleza e a epifania que experimento através da POESIA. Não pretiro a prosa, absolutamente, mas é na poesia que eu encontro sentido e alivio para a rudeza do mundo, e o assombramento de viver.
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* * * 
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São eternos esta oficina mecânica,
estes carros, a luz branca do sol.
Neste momento, especialmente neste,
a morte não ameaça, tudo é parado e vive,
num mundo bom onde se come errado,
delícia de marmitas de carboidrato e torresmos.
Como gosto disso, meu deus!
Que lugar perfeito!
Ainda que volta e meia alguém morra, tudo é muito eterno,
só choramos por sermos condizentes.
Necessito pouco de tudo,
já é plena a vida,
tanto mais que descubro:
Deus espera de mim o pior de mim,
num cálice de ouro o chorume do lixo
que sempre trouxe às costas
desde que abri meus olhos,
bebi meu primeiro leite
no peito envergonhado de minha mãe.
Ofereço cantando, estou nua,
os braços erguidos de contentamento.
Sou deste lugar,
com tesoura cega cortei aqui o meu cabelo,
sedenta de ouro esburaquei o chão
atrás do que brilhasse.
Pois o encontro agora escuro e fosco
no dia radioso é único e não cintila.
Veio de vós. A vida. Do opaco. Do profundo de Vós.
Abba! Abba! Aceita o que me enoja,
gosma que me ocultou Teu rosto.
Vivo do que não é meu.
Toma pois minha vida
e não me prives mais
desta nova inocência que me infundes.
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Adélia Prado, in: Qualquer coisa que brilhe.
Miserere, Ed. Record, 2013.
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domingo, 6 de julho de 2014

"um abrangente e resumido aterro de sinônimos..."

Narcissus, after Caravaggio, Vik Muniz, 2005
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se o mundo não fosse
esse aterro de
máquinas
barbas
pilhas

débitos
prazos
e canetas
marca-texto

medos
dúvidas
e embalagens
tetrapak

se o mundo não fosse
um aterro de babacas
ou se o mundo não fosse
um abrangente
e resumido
aterro de sinônimos (...)
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Bruna Beber, Neighborhoods.
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quinta-feira, 19 de junho de 2014

"... porque el amor es una cosa y la palabra amor es otra cosa/ y sólo el alma sabe dónde las dos se encuentran/ y cuándo/ y cómo..."

... I Went to the Garden of Love I, Evelyn Williams,2000
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Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.
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Herberto Helder.
Tríptico II.
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quarta-feira, 18 de junho de 2014

"parecia que a alma toda se sacudia..."

View, Antony Gormley, 1985
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"Todos os dias que depois vieram, eram tempo de doer. Miguilim tinha sido arrancado de uma porção de coisas, e ainda assim, estava no mesmo lugar! Quando chegava o poder de chorar, era até bom - enquanto estava chorando, parecia que a alma toda se sacudia, misturando ao vivo todas as lembranças, as mais novas e as muito antigas..."
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João Guimarães Rosa, in: Manuelzão e Miguilim.
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quinta-feira, 12 de junho de 2014

"... Lá de fora é de dentro para quem olha..."

 Newman, Mark Rothko, 1949
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Esta vibração verde é uma planta envolta em ar
este verde é o ar que perfuma
este perfume é a linguagem da planta

Eu não sou nada
se não sou a planta 
o ar
a fragrância
e nada é nada
se não se vê que nada é nada
aqui
agora

Um menino brinca no gramado
escolhe uma árvore
outra
outra
vai de uma árvore até o meio do jardim
corre até outra árvore
até outra
volta ao centro

Um pássaro canta
e lá de fora
árvores menino e pássaro
não são isso

Lá de fora é 
de dentro
para quem olha como quem
luta
como quem
passa através de nenhum 
obstáculo

A prova mais dura
o salto que consiste em
ficar imóvel à margem da 
plenitude sem margens
que
(a plenitude)
não existe como imagem nem suporte

E então 
o menino chega até a árvore
e se entende que não havia pássaro cantando
que o canto era esse nome
que recebe esse ato
para quem está olhando como quem 
ama
como quem
vive
como quem
sabe que as árvores
a verde vibração
que é a planta
envolta em ar
o salvam de ser aquilo
que todo o resto insiste em dar-lhe
a partir de sapatos
mulheres
espetáculos
dias

O que olha é agora o olhado
mas o menino
escolhe novamente uma árvore
corre e retorna
e outra vez corre e volta

O olhado fica para lá
e o que olhava volta a ser aquele que olha

Até que algum dia quem sabe
Até que não haja retorno
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Julio Cortázar.
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sábado, 24 de maio de 2014

Um bom lugar para ler um livro?

 Philosopher Reading, Rembrandt, 1631
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"Acho que deveria começar a fazer alguma coisa, agora que estou aprendendo a ver. Tenho 28 anos e não aconteceu praticamente nada. Recapitulemos: escrevi um estudo, ruim, sobre Carpaccio, um drama intitulado Casamento e que quer mostrar algo falso com recursos ambíguos, e versos. Ah, mas versos escritos cedo não são grande coisa! Deveríamos esperar para escrever, e juntar senso e doçura por uma vida inteira, longa, se possível, e então, bem no fim, talvez pudéssemos escrever dez linhas que fossem boas. Pois versos não são, como pensam as pessoas, sentimentos (deles temos o bastante na juventude) — são experiências. Por causa de um único verso é preciso ver muitas cidades, pessoas e coisas, é preciso conhecer os animais, é preciso sentir como os pássaros voam e saber com que gestos  as pequenas flores se abrem pela manhã. É preciso ser capaz de recordar caminhos em regiões desconhecidas, encontros inesperados e despedidas que vemos se aproximar por longo tempo... doenças de infância  que começam tão estranhamente, com tantas metamorfoses profundas e difíceis, dias em quartos quietos e reservados, e manhãs junto ao mar, sobretudo o mar, os mares, as noites de viagem que passavam ruidosamente e voavam com todas as estrelas — e ainda não é o bastante se precisamos pensar em tudo isso. É preciso ter lembrança de muitas noites de amor, todas diferentes entre si... Mas ainda não basta ter recordações. É preciso ser capaz de esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter a grande paciência de esperar que retornem. Pois elas ainda não são as recordações mesmas. Apenas quando elas se tornam sangue em nós, olhar e gesto, anônimas e indistinguíveis de nós mesmos, só então poderá acontecer que numa hora muito rara se levante e saia do meio delas a primeira palavra de um verso..."
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Rainer Maria Rilke, in: Os Cadernos de Malte Laurids Brigge.
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